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Estado de Contingência

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23
Out24

Pessoa - Uma Biografia de Richard Zenith

João Miguel Almeida

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A biografia é um género difícil e a «ilusão biográfica», a ilusão de continuidade de uma vida humana, já foi denunciada por um sociólogo tão importante e comentado como Pierre Bourdieu. Mas se qualquer biografia pode ser uma ilusão, a suprema ilusão não será pretender escrever uma biografia de Fernando Pessoa, o homem que dizia de si mesmo não ser mais do que um palco onde diversas personagens se iam sucedendo ou discutindo entre si?

Richard Zenith convenceu-me de que é possível escrever uma biografia, mesmo a biografia de um (?) sujeito(s) tão esquivo(s) como Pessoa. Só alguém que durante décadas trabalhou na edição dos textos do poeta seria capaz de tal empreendimento. Mas não creio que baste. É preciso também empatia, cultura geral e uma imensa paciência. Para escrever uma biografia à altura de Fernando Pessoa é preciso responder à interpelação de Ricardo Reis: «Para ser grande, sê inteiro: nada/Teu exagera ou exclui». Como não exagerar uma figura tão mitificada? Como não excluir algo de uma personalidade tão dispersa e de uma obra tão fragmentária?

O trajeto do biógrafo não pode ser alheio à vida biografada e o facto de Richard Zenith ser um norte-americano naturalizado português, com uma ampla cultura anglo-saxónica, e uma longa experiência de vida em Portugal e Lisboa, mostra-se vantajoso num texto que evita as armadilhas da mitificação e da «desmistificação». Escrevendo num estilo claro, por vezes humorístico, Zenith consegue analisar todas as limitações quotidianas e biográficas, de Fernando Pessoa ao mesmo tempo que põe em evidência a sua grandeza.

A sensação de alguém como eu, que já leu bastantes textos de Pessoa, muitos deles contraditórios, a sensação a é de estar perante um gigantesco puzzle que liga muitas peças soltas da obra e da vida. E que periodiza a vida do biografado, matizando a ideia pessoana de que «não evoluo, viajo». Em alguns aspetos, Pessoa evolui mesmo, embora permaneça um viajante mental. As máscaras não se sucedem ou esgotam de um modo arbitrário. O próprio «drama em gente» é um meio de transformação, uma ferramenta que nos últimos tempos da sua vida se torna menos útil, se é que a palavra «utilidade» tem algum sentido se aplicado à obra literária de Fernando Pessoa.

O livro é também uma introdução à literatura contemporânea, em que a obra e por vezes a vida de Pessoa é comparada com a de outros autores como Keats, Melville, Kavákis, Joyce ou Kafka. Com alguma surpresa, o indisciplinador e algo marginal poeta português faz melhor figura do que outros poetas modernos, como T.S. Elliot e Ezra Pound, no que respeita a consciência política na «hora da verdade» de consolidação das ditaduras.

Pessoa é o nome de uma obra que comecei a ler no pico da adolescência, com um misto de atração e de repulsa. Após a leitura da biografia de Zenith experimentei alguma reconciliação, com o escritor e com o rosto, ou a alma, que fingiu, até ao fim, ser.

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