O último romance de George Orwell, 1984, tem marcado sucessivas gerações de adolescentes. No meu caso, foi o tema da minha primeira recensão publicada, ao 15 anos, num jornal escolar. E foi um romance que me abriu portas para pensar a política, quer a dos grandes e visíveis poderes, quer a dos pequenos e invisíveis poderes, para ver na História e na ficção científica ferramentas úteis na compreensão do presente e imaginação do futuro.
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No caso de Fido Nesti, nascido em São Paulo, em 1971, a leitura do romance de Orwell, em 1984, nas suas palavras «deixou-o profundamente impressionado com a forma como o mundo distópico criado por Orwell se tem revelado cada vez mais verdadeiro». O seu meio de trabalhar essas impressões foi a ilustração e a banda-desenhada, tendo publicado trabalhos na Folha de São Paulo, na New Yorker e em diversas editoras.
A Alfaguara editou em Portugal a adaptação de Fido Nesti do famoso romance distópico – 1984, a Novela Gráfica. Uma obra deste género depara-se à partida com desafios difíceis de superar: como ser simultaneamente fiel a um texto que se tornou canónico e dar forma a uma leitura muito pessoal de um romance de culto?; como escrever uma obra que dê simultaneamente o tom do tempo em que foi escrita e mostre toda a sua atualidade?
Lendo 1984, a Novela Gráfica, somos confrontados com as imagens pessoais, porque desenhadas, de outra leitura de um romance marcante. São os fragmentos interligados do «filme» que passou na cabeça de outra pessoa quando lia um texto partilhado e do trabalho posterior da memória e da imaginação sobre essa primeira leitura.
O resultado é bastante estimulante. A novela gráfica combina muitas transcrições do texto do romance com as imagens sombrias de um tempo que para o autor era um futuro possível e para nós é uma espécie de passado alternativo que no entanto pode explicar melhor o nosso futuro do que as ilusões do nosso presente. Na maior parte da novela, o texto está ao serviço de imagens que são simultaneamente realistas, ancoradas na nossa memória visual do Reino Unido no segundo pós-guerra, e oníricas, como se habitassem os pesadelos dos homens desse tempo acerca do futuro. Mas há 13 páginas inseridas na novela gráfica em que a relação entre texto e imagens se inverte e o texto de George Orwell sobre «guerra e paz» é ilustrado por imagens sugestivas e assertivas. E mais oito páginas de apêndice sobre os «princípios da novilíngua» e também sobre os seus objetivos, cada vez mais atuais: «em Novilíngua era praticamente impossível expressar, a não ser de modo muito incipiente, quaisquer opiniões que divergissem da ortodoxia.»
Os cinzentos predominantes da novela gráfica são interrompidos por vermelhos agressivos ou, em poucas páginas, pelas cores suaves ilustrando o encontro amoroso entre Julia e Winston Smith.
Escrito no contexto da guerra fria, 1984 é uma narrativa acerca de uma guerra que não acabará sem fim à vista, a guerra de todos os poderes despóticos pelas mentes e pelos corações de todos os homens e mulheres.